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Revista Portuguesa de Estomatologia, Medicina Dentária e Cirurgia Maxilofacial

SPEMD - Rev Port Estomatol Med Dent Cir Maxilofac | 2018 | 59 (1) | 54-60




Caso ClÍnico

Artroplastia interposicional para tratamento de anquilose da articulação temporomandibular: relato de caso pediátrico

Interpositional arthroplasty for temporomandibular ankylosis treatment: a pediatric case report


a Faculdade de Odontologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
b Faculdade Estácio de Sá, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
c Instituto Nacional de Ortopedia (INTO), Rio de Janeiro, Brasil
Patrícia Cataldo de Felipe Cordeiro - patricia.cataldo@hotmail.com

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Volume - 59
Issue - 1
Caso ClÍnico
Pages - 54-60
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Received on 16/02/2018
Accepted on 17/05/2018
Available Online on 17/05/2018


Caso Clínico

 

Artroplastia interposicionalpara tratamento de anquilose da articulação temporomandibular: relato de caso pediátrico

Interpositional arthroplastyfor temporomandibular ankylosistreatment: a pediatriccase report

 

Patrícia Cataldode Felipe Cordeiroa,*, ValquíriaQuinelatoa, Letícia Ladeira Bonatob, André da Silveira Braunec, Thalita Alves Barreto Santosa, Priscila Ladeira Casadoa

a Faculdade de Odontologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

b Faculdade Estácio de Sá, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

c Instituto Nacional de Ortopedia (INTO), Rio de Janeiro, Brasil

 

*Correspondence to:

 

http://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.05.216

 

Resumo

A anquilose da articulação temporomandibularé a fusão entre o côndilo mandibular e a cavidade glenóide, gerando restrição aos movimentos articulares, função mastigatória limitada além de consequências estéticas e psicossociais. A condição ainda apresenta influência no desenvolvimento facial, erupção e posicionamento dentários quando ocorre em pacientes em crescimento. O estudo relata um caso clínico de AATM unilateral esquerda com infecção otológicaprévia. A alteração evoluiu com completa impossibilidade de abertura bucal e complicações odontológicas e psicossociais. Artroplastiainterposicional foi a técnica de escolha com utilização de retalho do músculo temporal como material de interposição acompanhada de coronoidectomiaipsilateral. Após o procedimento cirúrgico, obteve-se abertura bucal de 45 mm e o caso seguiu com tratamento multidisciplinar com fonoterapiae ortodontia. Dois anos após a cirurgia, o paciente apresentou abertura interincisal máxima de 37 mm e ausência de sinais de recidiva, o que confere estabilidade a conduta terapêutica proposta.

Palavras-chave: Anquilose temporomandibular, Articulação temporomandibular, Desordens da articulação temporomandibular

 

Abstract

Temporomandibular joint ankylosisis the fusion between the mandibular condyle and the glenoidcavity, and it generates joint movement restriction, limited masticatory function, as well as aesthetic and psychosocial consequences. Furthermore, when it occurs in growing patients, this condition influences facial development and dental eruption and positioning.

The present study reports a clinical case of left unilateral ankylosiswith otologicinfection history. This condition evolved to complete incapability to open the mouth, besides the psychosocial complications. The chosen treatment was interpositionalarthroplasty, using a temporal muscle flap as the interposition material and ipsilateralcoronoidectomy. After the surgical procedure, the technique provided a mouth opening of 45 mm, and the case was referred to multidisciplinary treatment with speech and orthodontic therapy. Two years after surgery, the patient had a maximum interincisal opening of 37 mm with no signs of relapse, thus granting stability to the proposed therapeutic approach.

Keywords: Temporomandibular ankylosis, Temporomandibular joint, Temporomandibular disorder

 

Introdução

A anquilose da articulação temporomandibular(AATM) é a fusão entre o côndilo mandibular e a superfície articular do osso temporal restringindo movimentos mandibulares. A condição limita a função mastigatória, podendo causar desequilíbrios nutricionais e alterações psicossociais e estéticas. 1, 2

A AATM pode ocorrer em qualquer idade, porém é mais frequente em crianças com menos de 10 anos, com ocorrência na primeira década de vida.3 Essa condição é acompanhada de alterações na erupção e posicionamento dentários e desenvolvimento craniofacial como micrognatiae assimetria facial.4

Dentre os fatoresetiológicos mais comuns estão o trauma, infeçãona região da ATM,5 condições inflamatórias sistémicas e locais6 e neoplasias.7 Em adultos, o trauma é apontado como a causa mais comum. Já em crianças, infeção, principalmente quadros de otite, tem sido relatada como a principal causa.8 Entretanto, a etiologia idiopática da condição também é considerada.9

De modo adicional, ressalta‑se ainda a associação da condição com alterações genéticas. Mutações no gene ANK e polimorfismos no gene ANKH foram determinantes para artrite em ratos e anquilose espondilosante em humanos.10 Embora a ATM seja um sítio susceptível, a relação entre desordem temporomandibulare o gene ANKH ainda é desconhecida. Contudo, polimorfismo no gene ANKH foi associado ao aumento de travamento mandibular,11 justificando investigações mais aprofundadas em expressões e interaçõesdesses polimorfismos com AATM.

Os mecanismos moleculares envolvidos na AATM ainda são pouco elucidados. A formação e reabsorção óssea são processos essenciais durante a cicatrização do osso, pois mantêm o equilíbrio da remodelação óssea entre osteoblastos e osteoclastos.

A radiologia e a histologia da massa óssea anquilosada demonstram que a AATM apresenta semelhanças com os processos de cicatrização de fraturas ósseas.12

O metabolismo ósseo está diretamenterelacionado a função da tríade molecular glicoproteicaRANK (Receptor Ativadordo Fator Nuclear KappaB), RANKL (Receptor Ativador do FatorNuclear KappaB) e OPG (Osteoprotegerina). 9, 13 O envolvimento do sistema na patogéneseda AATM relatou razão RANKL/OPG reduzida no grupo de massa óssea anquilosada em comparação com o grupo de controle, sugerindo que a deficiência de osteoclastospode ser um fator importante que afetaa AATM.14 Outro estudo relatou que a mesma relação contribuiu para a formação de osso novo em pacientes com espondilite anquilosante.15

O diagnóstico da AATM é geralmente realizado com base em sinais e sintomas e confirmados por exames de imagem.

O detalhado exame clínico e anamnese são de grande importância para o levantamento de hipótese sobre o tipo de comprometimento articular.16

O tratamento da AATM, cirúrgico, é um verdadeiro desafio ainda nos dias atuaisdevido à alta taxa de recidivas. Os objectivos principais desta modalidade de tratamento são a remoção meticulosa e radical da estrutura óssea anquilosada, além de reconstrução e restauração da função fisiológica da mandíbula.1 Todavia a conduta não oferece resultados totalmente previsíveis. As complicações mais frequentemente relatadas após o tratamento são a abertura limitada da boca e recidiva do quadro.17

Dessa forma, o presente artigo objetivoudescrever um caso clínico de AATM diagnosticado na infância com abordagem etiológica e terapêutica.

Caso clínico

O protocolo clínico do trabalho foi submetido e aprovado pelo Comité de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO).

Paciente de 9 anos de idade e género feminino foi encaminhada para setor de Cirurgia Cranio‑Maxilofacial do INTO para avaliação de anquilose temporomandibular, com queixa de dor à mastigação e limitação de abertura bucal. A história médica pregressa mostrou episódio de otite média aos dois anos de idade com internamento hospitalar de 18 dias. O quadro evoluiu com AATM unilateral esquerda. O parto da paciente ocorreu por cesariana sem intercorrências.

Não há relato de trauma na região da articulação temporomandibular. A condição gerou transtornos emocionais devido ao “bullyng” sofrido no ambiente escolar. Durante a avaliação clínica, observou‑se completa impossibilidade de abertura bucal (0 mm) e micrognatia. Dados tomográficos evidenciaram AATM unilateral esquerda e deficiência mandibular (Figura 1).

 

 

A conduta cirúrgica proposta foi artroplastiainterposicional(AI) com utilização de retalho de músculo temporal como material interposicional, seguida de coronoidectomiaipsilateral.

Após anestesia geral com entubação nasotraqueal, o acesso à ATM foi realizado por meio de incisão pré‑auricular com extensão temporal. A incisão inicial foi feita através da pele e tecido subcutâneo até a profundidade da fáscia temporal (Figuras 2, 3, 4, 5 e 6). Após o procedimento cirúrgico, obteve‑se uma abertura de boca de 45 mm. (Figuras 7 e 8).

 

 

 

 

 

 

 

 

O acompanhamento multidisciplinar baseou‑se em sessões de fonoterapiaespecializadas em motricidade oral realizado por dois anos com redução da frequência ao longo do tratamento. Inicialmente foi realizada três vezes por semana, e após três meses houve aumento de intervalo entre as sessões, entretanto com continuidade da terapia domiciliar supervisionada.

A paciente iniciou também tratamento odontológico restaurador, periodontal e ortodôntico. Após 2 anos do procedimento cirurgico, apresentou abertura bucal de 38 mme aguarda maturidade osseapara realizacaode cirurgia ortognatica (Figuras 9, 10 e 11).

 

 

 

 

Discussão e conclusões

O caso clínico apresentado ilustrou AATM unilateral caraterizada, clinicamente, por assimetria facial e retrusão mandibular associada a desvio de mento. O comprometimento funcional foi evidenciado pela dificuldade na mastigação, deglutição e fonação. Adicionalmente, a restrição de abertura bucal, em casos de AATM, associa‑se a higiene bucal limitada. 1, 2 As características clínicas evidenciadas em literatura foram compatíveis com os dados do relato de caso apresentado, no qual o diagnóstico clínico baseou‑se na sintomatologia dolorosa mastigatória e abertura bucal limitada.

A abordagem diagnóstica da AATM inclui exames complementares imaginológicos. A deformidade articular, perda total de espaço articular e formação óssea anormal ao redor da articulação é observada em radiografias panorâmicas. Contudo, a natureza e extensão total da patologia é revelada por exames mais específicos como tomografia computadorizada, a qual confere maior precisão diagnóstica e riqueza detalhes,18 como a redução do espaço articular e a presença de crescimento ósseo anormal. Dessa forma, o exame permite a realização de diagnóstico diferencial com outras alterações morfológicas e patológicas da ATM.19 O diagnóstico definitivo do caso apresentado baseou‑>se em achados clínicos e imagens de tomografia computadorizada, as quais ainda auxiliaram no planejamentodo tratamento proposto.

A etiologia da AATM inclui trauma, artrites, infeções, cirurgias prévias na ATM, além da possibilidade de ser congénita ou idiopática. 20, 21 O presente estudo sugere a possibilidade de associação da AATM com o histórico de infeçãootológicaprévia unilateral embora não seja descartado o caráter idiopático da condição. AATM com histórico de otite em paciente pediátrico já foi relatado na literatura. O autor ainda relata que em países de terceiro mundo a infecção permanece como a causa mais comum de AATM infantil / ou em crianças variando entre infecções odontogénicas, orais, cutâneas locais otológicase quadros de osteomielite.22

Efeitos psicossociais no indivíduo e familiares também foram associadas a AATM. As alterações faciais estéticas, limitação de higiene bucal e restrição de função mastigatória afetamo desenvolvimento cognitivo‑comportamental e influenciam aspectos sociais.23 O papel familiar também apresenta forte participação no tratamento e estabilidade dos casos tratados.22 O presente estudo ressalta a importância do acompanhamento multidisciplinar pós‑cirúrgico e o compromisso dos pais para com a reabilitação do caso, fatoresprimordiais para o sucesso do tratamento.

A anquilose da ATM quando ocorre na infância pode prejudicar o crescimento craniofacial gerando assimetrias faciais severas. 24, 25 O côndilo mandibular, considerado um sítio de crescimento mandibular, quando é afetadopela anquilose restringe o crescimento da face média gerando retrusãomandibular e deformidades faciais.22 Além disso, o alongamento secundário e hipertrofia do processo coronoideé evidenciado e acentua a restrição do movimento mandibular. A paciente do estudo mostrou grave retrusão mandibular, o que justificou a indicação de cirúrgica ortognática após a maturação esquelética.

Variáveis técnicas cirúrgicas foram descritas para o tratamento da AATM e nenhuma estratégia foi uniformemente estabelecida justificando a complexidade da condição.20 Recentemente, uma meta‑análise em que foram incluídos 17 estudos envolvendo 740 participantes com anquilose da ATM tratados com abordagens cirúrgicas (artroplastiade abertura, AI e reconstrução articular), concluiu que a AI de gapé o tratamento mais frequente da anquilose da ATM com menor taxa de recidiva, seguida da reconstrução articular e artroplastiaem gap.9 No presente caso foi utilizada a AI, caracterizada pela ressecção da massa anquilóticaseguida de interposição do material biológico fáscia do músculo temporal. Todavia, outros materiais podem ser utilizados como derme, cartilagem auricular e materiais não biológicos como silicone e acrílico, evitando dessa forma, a recidiva da condição. 4, 17

As vantagens da AI são a sua simplicidade e menor tempo de operação. Contudo, encurtamento da unidade côndilo‑ramo pode gerar má oclusão de mordida aberta anterior, formação de pseudoartrose e risco de lesão da artéria maxilar interna.26

Em avaliação comparativa com a reconstrução condilar (RC), a técnica de AI não mostrou diferenças estaticamente significativas em escores de dor e abertura bucal máxima. Dessa forma, a decisão de tratar a anquilose da ATM com AI ou RC não deve ser feita a partir das diferenças esperadas no desfecho clínico entre os dois procedimentos.20 O presente estudo evidenciou a eficácia da técnica com o aumento da amplitude bucal e a restauração da função mastigatória da paciente.

Quanto à estabilidade do tratamento, limitação na amplitude mandibular e reanquiloseforam as complicações mais frequentes. De encontro a conduta de alguns cirurgiões, a recidiva de casos infantis não se deve à falta de cooperação com o tratamento reabilitador com fisioterapia e fonoaudiologia, mas à ressecção inadequada da massa anquilótica. Tal fato pode ser evidenciado pela abertura bucal passiva no período transcirúrgico.

Caso haja necessidade de uma força excessiva para abertura, no período pós‑operatório o movimento será muito mais doloroso gerando insucesso, independentemente do nível de cooperação do paciente na reabilitação. Dessa forma, planeamento refinado permite que o cirurgião identifique a localização, extensão e relações anatómicas da área anquilótica.22 A tomografia possibilita imagem com processamento tridimensional de corte fino permitindo direcionaro cirurgião em operações complexas de forma mais precisa e segura. Ressalta‑se ainda a necessidade do tratamento multidisciplinar reabilitador pós‑cirúrgico para melhor estabilidade do caso.27

A etiologia idiopática da anquilose reduz a possibilidade de tratamentos específicos direcionadosa causa da condição, tornando o prognóstico obscuro e sem controlede recidivas. 28, 29 Estudos evidenciam que a espondiliteanquilosantecompartilha similaridades com outros tipos de artrites inflamatórias com altos níveis de citocinas pró‑inflamatórias e atividadeosteoclática. Após a fase inflamatória uma ossificação excessiva ocorre na região da erosão inicial o que caracteriza o quadro de anquilose marcado pelo aumento da razão de OPG/RANK no soro dos participantes.15 Entretanto o mecanismo de iniciação e progressão da AATM ainda é desconhecido.

Dessa forma, ressalta‑se a necessidade de investigações moleculares na patogêneseda AATM elucidando fatoresetiológicos e direcionando terapias específicas, principalmente em casos pediátricos já que a condição apresenta diretarelação com o desenvolvimento craniofacial

A identificação de biomarcadoresgenéticos para AATM é uma conduta promissora para diagnósticos específicos e tratamento precisos. Em humanos o gene ANKH foi associado a uma variedade de defeitos esqueléticos e articulares, incluindo espondiliteanquilosante, artropatiarasgada do manguito,30 displasia craniometafisária, 31 e condrocalcinose.32 Distúrbios da ATM têm sido relacionados a alterações genéticas na tríade RANK/OPG/RANKL tanto em manifestações locais33 como em associação com outras artropatias34 conferindo o papel sistêmicoe primordial da tríade molecular.

O estudo mostra‑se limitado quanto à identificação específica do fatoretiológico envolvido no caso sugerindo relação com infeçãoprévia sem eliminar o caráteridiopático da condição. Ressalta‑se a necessidade de novos estudos com exames de imagens iniciaise finais evidenciando a correcção do dano estrutural. Estudos de avaliação de predisposição genética a AATM também são promissores para futuras condutas terapêuticas.

A artroplastiacom interposicional de fáscia temporal representa uma adequada alternativa para o tratamento de paciente infantil com AATM. O planejamentopreciso e tratamento pós‑ cirúrgico multidisciplinar adequado são imprescindíveis para o sucesso e estabilidade da conduta terapêutica proposta.

 

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*Corresponding author:

Patrícia Cataldode Felipe Cordeiro

Correio eletrónico: patricia.cataldo@hotmail.com

 

Responsabilidades éticas

Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos da comissão de investigação clínica e ética relevante e de acordo com os do Código de Ética da Associação Médica Mundial (Declaração de Helsínquia).

Confidencialidade dos dados. Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.

Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência está na posse deste documento.

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

Historial do artigo:

Recebido a 16 de fevereirode 2018

Aceite a 17 de maiode 2018

On-linea 30 de maiode 2018